Dois Lixos: o Social e o Reciclável
Uma família muito rica e tradicional, de heranças corruptas, e podres poderes de velhas e velhas gerações. Por ser tão antiga e tradicional, é obvio que seus bens, que eram tantos e sempre bem administrados, não tinham como ter perdas e sim ganhar.
Mas o que não dava para compreender aos que a conheciam era como se triplicavam os lucros, se a família era distinta, de moral respeitosa. Tudo bem, existem casos que não se explicam. Fazer o quê? Deixa pra lá, que o que a vida esconde a própria vida se mostra, e a verdade um dia chega.
Uma outra família muito pobre financeiramente vivia se virando honestamente para viver. Dinheiro dificílimo, conseguido com muito suor e sangue derramado, e quase todos, dos sete integrantes da família, ganhavam o salário mínimo, ou melhor, um salário mixo. Somente dois ganhavam um pouquinho mais que um salário mínimo.
O pai de família fora aposentado antes do tempo. Motivo? Doenças graves e uma delas o coração e diabete alterada, para não falar no tal reumatismo. Como todos os aposentados brasileiros, que trabalharam muito e em compensação ganham de presente do governo um salário mixo, assim era também seu Zé do barraco de frutas, que era o que ele vendia para aumentar sua renda no lugarejo onde morava.
Sua mulher era a dona Francisca, lavadeira incansável e dona de casa, passadeira igual não tinha. Dava para tirar mais que seus filhos, que trabalhavam de carteira assinada. Com mais as faxinas, dona Francisca se virava.
Somente um filho trabalhava e ganhava um pouco mais. Conseguiu fazer alguns cursos de computação, através de estudos foi contemplando, por seu grande esforço e inteligência, sem esquecer de sua capacidade e a bênção de Deus e de seu santo protetor padim (Padre Cícero) Cícero, como o chamavam.
Olha que esse foi um rapaz de muita sorte, além de fé e rezador que ele era. Conseguiu trabalho em uma grande empresa de informática, era sério, respeitador. Vivia para o estudo, economizava tudo e até ajudava sua família e irmãos. O nome dele era Cícero, por causa do padim. Seus pais lhe deram o nome e o batizaram, entregando ele ao padre Cícero, o santo dos pobres material e espiritual.
Nonato era o segundo depois de Cícero, que era o mais velho do irmãos, filhos de seu Zé e dona Francisca. Não gostava muito de trabalhar, mas nem pensar em ficar parado; seus pais, irmãos e a própria vida não permitiam tamanho desatino. Nonato vivia de enxada na mão e trabalhava, ganhava dinheiro e gastava, sem pensar em futuro, somente no hoje.
Felisberto,conhecido como de Berto Fofoca ou Berto Notícia, era o terceiro filho, fofoqueiro e atrapalhado. Gostava de bate-papos, só para ouvir, perguntar e saber, o que houve, o que já aconteceu, o que estava para acontecer.
Raymunda ou Raymundinha, era a quarta dos irmãos. Moça séria, ótima filha, trabalhadeira, estudiosa, educada e bonita. Trabalhava em uma pequena rádio AM e FM da cidade. Era recepcionista e secretária ao mesmo tempo, e também telefonista. Como todos os trabalhadores do Brasil, ganhava um salário para trabalhar por três, cinco, sete ou até mais funções. Eta exploração!
Sendo Raymundinha uma pessoa bem informada, Felisberto não a permitia ter paz ao vê-la chegar ao lar. Queria uma série de informações e confirmações de tudo que acontecera, acontecia e ia acontecer.
O quinto irmão, o caçula, de nome Alexandre, porte atlético, era um belo rapaz, de pele fina e rosada, olhos esverdeados e ao mesmo tempo azuis, uma mistura muito bonita, como era sua mãe, Francisca, que tinha olhos azuis e era descendente de franceses e espanhóis, na época da invasão do Brasil. Seu pai, José ou Zé, era descendente de portugueses e índios. Alexandre estudava e se preparava para o vestibular de Direito. Ele, inteligente, esperto, educado, sabia comportar-se em qualquer ambiente social, através de vários serviços e locais que teve que freqüentar e trabalhar.
O último trabalho dele teve que ser operário de uma prestadora de serviços de pegar lixo nas ruas para a prefeitura de sua cidade. A família queria outro serviço, não por preconceito e sim por saber que nem roupas apropriadas ao trabalho davam e o perigo de contágio de doenças. Alex, como era chamado o rapaz, era muito moço ainda e, além da necessidade, não ligou e aceitou o emprego.
Passado uns meses, a notícia-bomba estourou nos jornais, noticiários locais regionais e nacionais: o escândalo da família mais rica, poderosa financeiramente, e com status social. Foram descobertos quantos desvios de verbas, corrupções, subornos e sonegações do imposto de renda trilionários os indivíduos de tradições desta família fizeram e faziam até os dias atuais. Foi um escândalo e a fofoca rolou de boca em boca e a fonte como sempre era o Felisberto, o fofoqueiro, noticiário de toda a comunidade.
Alexandre, suando no trabalho pesado e digno, havia juntado alguns trocados e comprara ingressos para ele e mais dois amigos, únicos, que, além de amigos, também o admiravam, irem a uma festa. Vestiram-se e calçaram muito bem, arrumaram-se como o ambiente pedia e foram. Chegando à festa de jovens classe média-alta e alta classe, umas moças, que estavam em três, começaram a sorrir para os três rapazes e mais para Alexandre, que se destacava até no nome. Seus amigos eram Antônio e Geremias, chamados na intimidade de Tonho e Gemi.
As moças, que mais pareciam manequins de vitrine, tão bem vestidas, supernutridas, corpos de desfile em passarela para todos admirar, tamanha belezura, como o povão dizia na comunidade. A mais bela dentre elas logo se aproximou e agarrou Alexandre e ficaram a noite inteira a dançar, abraçar, beijar e arder em febre de desejos. Corpo a corpo já se enroscava e a fome de um corpo e o outro já chamava a atenção de todos. Ela era a mais bonita e a mais rica filhinha de papai. E quem era Alexandre? Para os dois amigos, Tonho e Gemi, o melhor amigo e, para todos, um desconhecido. Neste momento, eis que um velho conhecido de cursinho de Alex chega e grita: – Didjei! Pare o som, pare a festa e todos me escutem!
Em berros, Osmando gritava no salão e o silêncio se fez. Osmando, invejoso, despeitado que era de Alexandre e de olho na mais bonita e rica da festa, disse: – Patrícia, você conhece esse cara?
E Patrícia respondeu: – Conheci agora e sei que se chama Alexandre. Por quê?
Osmando disse-lhe: – Saiba você e todos que eu o conheço de cursinho. Ele é bolsista, sei que é filho de Zé do barraco de frutas e Francisca ou Chica Lavadeira, da comunidade do Lixão II. Ele quer te engravidar, ficar mesmo, sexo e cama e se dar bem com seu corpo, dinheiro, posição social e tradição de família. Ele não passa de um lixeiro. Ele é um lixo!
A resposta da orgulhosa e atrevida Patrícia foi dar um tremendo bofetão no rosto de Alexandre. E disse aos berros: –Afaste-se de mim seu nojento, lixo azedo, resto dos restos dos lixos. Afaste-se de mim e de minha família, meu pai e amigos!
O rapaz levou outro bofetão no rosto e Patrícia disse: – Esse é por mim, seu safado, e pela minha posição social, seu lixo!
O rapaz, sem entender nada de quem ela era filha e quem era ela, perguntou: – Quem é você, afinal?
Osmando gargalhou alto e aos berros disse: – O pai dela é o maior político da região, dono das maiores empresas e, junto à mãe, tem as maiores fazendas. E disse o nome e o sobrenome da família de Patrícia.
Neste momento dramático e divertido para certas classes (sociais?), eis que Alexandre se lembrou quem eram eles e o que o seu irmão Berto Notícia e fofoqueiro havia lhe contado antes de sair de sua humilde casa.
Alexandre deu uma boa e alta gargalhada e disse em altos brados: – Pois muito bem, estamos quites, somos filhos de lixos e lixos somos. Você é o lixo social e não reciclável, sem esperança alguma de ser reaproveitado. Sua formação é de roubo, desvio de verbas, sonegação de impostos, subornos e muitas corrupções. É intratável e não reaproveitável. Eu sou o lixo reciclável, que tem dignidade e honestidade. Trabalho duro e não roubei, tenho vergonha na cara e suor no rosto de trabalho digno e salário injusto.
E continuou:
– Não generalizando a todos os cidadãos, mas o nosso caso é nosso. Sou eu um Zé Povão e não um Mauricinho, e você, Patrícia, seu nome já diz tudo. Para quem sabe ler, um pingo é letra e você é o pingo das falanges dos ladrões, Patricinha. Quanto aos bofetões na minha cara, eu não me importo.Você bateu não foi em um rosto, coisa de rico, você se enganou até nisso. Você bateu em um cara que tem uma cara, sou lixo reciclável. Quanto a você, é o pior lixo, pois só será reaproveitável daqui a cem ou trezentos anos.
Izildinha Fontenelle